Mariupol – Unlost Hope, de Maksim Litvinov

Documentário inspirado nos diários de Nadiya Sukhorukova (Blockade diary of Nadiya Sukhorukova, entretanto publicados em livro) relata o drama e a tragédia humanitária vivida em Mariupol nas primeiras semanas da guerra na Ucrânia em Fevereiro/Março de 2022, pela voz da própria Nadiya Sukhorukova e de outros sobreviventes.

Um relato pungente pincelado pela transparência de lágrimas que não esquecem o medo dos ataques aéreos, a incerteza dos dias seguintes e a contemplação no silêncio, da inevitabilidade de uma morte quase certa, a fuga e consequente exílio, e o desejo de regresso a casa depois da guerra, tópicos comuns a quem se vê deslocado e forçado a sair da sua pátria, a quem arrancam as raízes de um futuro que germinaria na terra onde nasceram.

Diário de Nadiya Sukhorukova (jornalista): “09 de Março de 2022, 19h00. Décimo quarto dia de guerra. O meu cão começa a uivar. E percebo que eles vão começar outra vez. Vou à rua. Embora seja de dia estou rodeada por silêncio. Não há carros, vozes, crianças, não há avós sentadas nos barcos. Até o vento morreu. Há algumas pessoas por aqui. Ficam imóveis, em casa ou no estacionamento, tapadas por roupas ou cobertores. Não quero olhar para eles. Tenho medo. Talvez veja alguém conhecido.”

Diário de Nadiya Sukhorukova: “11 de Março de 2022, 23h00. Décimo sexto dia de guerra. Há três dias um amigo do meu sobrinho mais velho passou por aqui. Contou-nos que o quartel dos bombeiros tinha sido atingido. Vários bombeiros morreram. Tenho a certeza que vou morrer em breve. É apenas uma questão de dias. Todos esperam a morte. Só quero que a minha não seja demasiado assustadora.”

Ksenia Kayan (tradutora/voluntária): “Mariupol é agora uma vala comum. Uma cidade morta. Os cidadãos de Mariupol foram despojados de tudo. Não se limitaram a matar-nos. Mataram a nossa História, o nosso passado. Nem sequer podemos voltar para levarmos fotos dos nossos entes queridos. Cabelos dos nossos filhos, álbuns com fotos deles. (Agora, aqui…onde as pessoas têm alma,…) Mariupol é terra queimada e, por dentro, sinto-me igual…”

Ksenia Kayan: “Lembro-me de uma menina… tinha quatro anos. O pai trouxe-a nos braços. Pousaram-na num sofá, à entrada do prédio. Ela estava a gemer. Cerca de vinte minutos depois, morreu. O pai esteve sempre ao lado dela. Estava ajoelhado diante da filha e uivava como um animal. E repetia: ‘Porquê ela e não eu?’ Compreendo-o. A mesma pergunta também me tortura.”

Mais info:

https://www.rtp.pt/programa/tv/p43424

https://www.imdb.com/title/tt21622742/

Mariupol, de Maksim Litvinov, 2022

Diários de Viagem, Walter Benjamin

“Só se conhece um lugar depois de o ter experimentado em todas as dimensões possíveis. Para desfrutar de uma praça temos de ter entrado nela a partir dos quatro pontos cardeais, abandonando-a também em cada uma dessas quatro direcções. De outro modo ela saltanos ao caminho três ou quatro vezes de forma totalmente inesperada antes de nos termos decidido a dar com ela. Numa fase posterior procuramo-la e usamo-la como ponto de orientação. O mesmo se passa com as casas. O que nelas se esconde só o percebemos quando passamos por outras em busca de uma casa muito particular. Dos arcos dos portais, das ombreiras da porta de entrada, em letras negras, azuis, amarelas e vermelhas de vários tamanhos, salta como uma seta a imagem de botas ou roupa acabada de passar, e em forma de degrau gasto ou de lanço sólido de escadas toda uma vida de luta ensimesmada e muda. Também é preciso ter atravessado as ruas no carro eléctrico para perceber como esta luta se continua pelos andares, para chegar ao seu último e definitivo estádio nos telhados. Até aí, o que fica são as frases mais fortes e antigas das tabuletas das lojas, e só a partir do avião se tem diante dos olhos a elite industrial da cidade (…).” (p.106)

“Moscovo é a mais silenciosa de todas as grandes cidades, e com a neve ainda mais. O instrumento principal da orquestra das ruas, a buzina dos carros, está aqui mal representado, porque há poucos automóveis. E em comparação com outros centros há aqui muito poucos jornais, de facto apenas um tablóide, o único vespertino, que sai diariamente pelas três da tarde. E também os pregões dos vendedores de rua são aqui bastante discretos. O comércio de rua é em grande parte ilegal e não gosta de chamar sobre si as atenções. Dirige-se aos transeuntes, não com pregões, mas falando com palavras discretas, quase sussurradas, com qualquer coisa do tom de um pedinte. Só uma casta anda mais ruidosamente pelas ruas: a dos trapeiros com o seu saco às costas; o seu grito melancólico atravessa uma ou duas vezes por semana todas as ruas de Moscovo. Há uma coisa extraordinária nestas ruas: a aldeia russa brinca nelas às escondidas. Quando se atravessa um desses grandes portões – muitas vezes com grades de ferro forjado, mas nunca encontrei nenhum fechado-, estamos no início de uma espaçosa zona residencial, muitas vezes tão ampla e generosamente traçada como se o espaço nesta cidade não custasse nada. E abre-se diante de nós uma propriedade rural ou uma aldeia. O chão é irregular, crianças andam de trenó, retiram a neve com pás, os cantos são preenchidos com barracas para lenha, instrumentos de trabalho ou carvão, há árvores dispersas, escadas de madeira ou anexos primitivos dão à fachada lateral ou traseira das casas, que do lado da rua se apresentam com um aspecto muito urbano, o aspecto de uma casa rural russa. E assim a rua se expande até alcançar a dimensão da paisagem” (p.169)

Diários de Viagem, Walter Benjamin, Edição e tradução, João Barrento, Assírio & Alvim, 2022. (pp.106; 169)

Pátrias, Timothy Garton Ash

“A Europa do nosso tempo difere de todas as anteriores graças a uma mudança revolucionária: O crescimento exponencial das viagens e comunicação de massas desde a década de 1960. É claro que, no século XVIII, os jovens ingleses da classe alta faziam o Grand Tour, visitando esplendores culturais escolhidos no caminho para Roma. No final do século XIX, os turistas da classe média de países mais prósperos visitavam os países europeus vizinhos, utilizando amiúde vias-férreas construídas havia pouco. O turista britânico era uma figura cómica familiar nas caricaturas continentais. Os cavalheiros ingleses do início do século XX — amiúde acompanhados pelas suas damas encontravam-se uns aos outros, socialmente, em termas, casas de campo e pistas de corridas, antes de se encontrarem de novo em combate mortal, como os aristocráticos oficiais alemães e franceses em A Grande Ilusão, o filme magnífico de Jean Renoir sobre a Primeira Guerra Mundial. Primeiro, matavam faisões juntos, e depois matavam-se uns aos outros.

Mas durante a maior parte da história europeia, até bem entrado o século XX, a maior parte dos europeus nunca visitou outro país, salvo para fazerem o serviço militar durante uma guerra, para emigrarem por não conseguirem obter comida suficiente na quinta dos pais ou por serem obrigados a abandonar as suas casas por um pogrom ou outro ato de limpeza étnica. Para muitos que viviam em zonas rurais, o horizonte mental nem sequer era a nação ou o Estado; era a vizinhança imediata, no máximo, a região. Quando lhes era pedida a sua identidade, os camponeses das terras fronteiriças orientais da Polónia, Ucrânia e Bielorrússia respondiam por vezes que eram tutejszy, que significava simplesmente «as pessoas daqui». Viajar queria dizer deslocar-se na carroça puxada por cavalos até ao mercado na vila local. Recordando a primeira época do pós-guerra, um daqueles agricultores robustos da aldeia de Westen disse-me: «Ninguém pensava na Europa. A Europa veio muito depois».”

Pátrias – Uma História Pessoal da Europa, Timothy Garton Ash, Temas e Debates, 2023, pp.63-64.

“O que podem as Palavras”, filme de Luísa Sequeira e Luísa Marinho

O que podem as Palavras? O que pode a Literatura?

Actualmente em exibição, “O que podem as Palavras”(2022), documentário realizado por Luísa Sequeira e Luísa Marinho, transporta-nos até 1972, ano em que é publicado o livro “Novas cartas Portuguesas”, da autoria de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, as “Três Marias”, como seriam apelidadas no âmbito do processo instaurado pelo Estado Novo; o processo ganhou contornos internacionais, aspecto bem desenvolvido no filme, assim como um relativo incremento de volume mediático, justificado pelas alterações sociais e políticas que se viviam em inúmeros pontos do planeta e impulsionadas por diversos movimentos feministas.

O convite para a realização do filme partiu de Ana Luísa Amaral (1956-2022), poeta, tradutora, professora, investigadora de Literatura e membro do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, que conduziu as entrevistas no documentário, no âmbito de um projecto mais alargado de investigação por si coordenado e desenvolvido ao longo de vários anos: “Novas cartas Portuguesas 40 anos depois”.

É feito um retrato e uma revisitação do período pré e pós-25 de Abril assim como a leitura por parte das autoras, cinquenta anos depois, de algumas das consequências políticas e sociais decorrentes da escrita, publicação e mediatização do já referido processo.

Um filme sobre a palavra, a escrita e o exercício da escrita, a solidariedade política e social, o poder da coragem e da esperança de que a Palavra se imbui.

Casa de Dia, Casa de Noite, de Olga Tokarczuk

“Peter Dieter arrastava as pernas e olhava para as pedras, para os arbustos de roseira brava onde já rebentavam botões. Parava a cada dúzia de metros, respirando com dificuldade. Nessas ocasiões, observava as folhas, os caules e os cogumelos de pés finos que lentamente consumiam as árvores derrubadas.

Primeiramente, o caminho seguia por entre pousios e, depois, entrava numa floresta de abetos. Quando a floresta chegou ao fim, Peter tinha atrás das suas costas o pa- norama das montanhas que, até ali, carregara dentro de si. Olhou para trás apenas uma vez, porque teve medo de destruir aquela vista com o seu próprio olhar, tal como os selos valiosos perdem a cor e o padrão quando são manuseados com muita frequência. Só parou na crista da montanha, deu uma volta completa, saciando-se com a vista, bebendo-a aos goles. Tinha o costume de comparar todas as montanhas do mundo com aquelas montanhas e nenhuma lhe parecia tão bonita como aquelas. Ou eram grandes demais, maciças demais, discretas demais, ou, ainda, demasiado selvagens e escuras, densamente arborizadas como a Floresta Negra, ou demasiado domesticadas e arranjadas, abertas como as dos Pirenéus. Sacou da máquina fotográfica e registou o que avistava. Clique – a aldeia de casas dispersas. Clique – as florestas escuras de abetos, repletas de sombras negras. Clique – o fiozinho do riacho. Clique – os campos de colza amarelos no lado checo. Clique o céu. Clique as nuvens. Sentiu, então, que mal conseguia respirar, que estava quase a sufocar.

Avançou, subindo a montanha, e alcançou um trilho turístico; uns jovens de mochila que por ali passavam cumprimentaram-no, estava ele a limpar o suor que lhe inundava os olhos, e continuaram o seu percurso. Na verdade, teve pena que eles se tivessem ido embora. Poderia contar-lhes que costumava andar por ali, quando era da idade deles, que, mais abaixo, sobre musgo húmido, fizera amor pela primeira vez com uma mulher ou, então, mostrar-lhes onde dantes ficava o moinho de vento dos Olbricht, que se fazia ouvir em toda a aldeia com os seus braços abertos. Pensou até em chamá-los, mas estava sem fôlego. O coração batia-lhe forte na garganta e sufocava-o. Regressar agora seria desperdiçar a ocasião; por isso, com grande esforço, caminhou mais umas centenas de metros e alcançou o topo da montanha, onde justamente passava a fronteira. Avistou ao longe os postos fronteiriços caiados de branco. Perdeu completamente o fôlego; pelos vistos, o ar rarefeito há muito esquecido não lhe fazia bem. Esquecera-se de que podia ser perigoso para os pulmões, que tinham, entretanto, aprendido a respirar a brisa húmida do mar.

Sentiu-se mal, quando já imaginava o caminho de regresso. «O que aconteceria se eu morresse aqui», pensou, cambaleando até aos marcos da fronteira. Pareceu-lhe engraçado, vá-se lá saber porquê. Subir uma encosta até ao topo, chegar ali depois de ter atravessado meia Europa, de ter vivido tantos anos numa cidade portuária, de ter gerado dois filhos, construído uma casa, amado, sobrevivido a uma guerra. Riu-se de si para si e tirou um chocolate do bolso. Fez uma pausa e desembrulhou o chocolate do papel de prata com cuidado, mas, quando o levou à boca, já sabia que não iria engoli-lo. O seu corpo estava ocupado com outra coisa. O coração contava o ritmo, as artérias folgavam, o cérebro produzia o narcótico de uma santa morte. Peter sentou-se, encostado ao marco da fronteira com o chocolate na boca, enquanto o círculo distante do horizonte conduzia lentamente o seu olhar. Tinha uma perna na República Checa e outra na Polónia. Ali ficou sentado cerca de uma hora, morrendo segundo após segundo. No fim, pensou ainda em Erika, que estava à espera dele lá em baixo no automóvel e certamente já estaria preocupada. Talvez até já tivesse telefonado para a polícia. Naquele momento, porém, também ela lhe parecia térrea, marítima e irreal. Como se ele tivesse sonhado a noite inteira. E não soube sequer quando morreu, porque tal não aconteceu imediatamente mas devagar, devagarinho, como se tudo nele ruísse.

Os guardas da fronteira checos encontraram-no ao entardecer. Um deles ainda tentou encontrar o pulso de Peter e outro, mais novo, olhou assustado para o fio de chocolate castanho que escorria da boca para o pescoço. O primeiro pegou no rádio e olhou inquisitivamente para o segundo e ambos olharam para o relógio. Hesitaram. Devem ter pensado no relatório que teriam de escrever e no jantar, para o qual se atrasariam. E, depois, agindo na mais completa conivência, empurraram a perna de Peter do lado checo para o lado polaco. Mas tal não lhes bastou, acabaram por transferir todo o corpo de Peter para norte, para a Polónia. E, com sentimentos de culpa, afastaram-se em silêncio.

Meia hora mais tarde, Peter foi encontrado pelas luzes das lanternas dos guardas da fronteira polacos. Um deles exclamou «Credo!» e saltou para o lado. O outro pegou na arma instintivamente e olhou em redor. Reinava um grande silêncio, as cidades dos vales pareciam pratinhas de chocolate deitadas fora, nas quais as estrelas se reflectiam. Os polacos olharam para o rosto de Peter e murmuraram qualquer coisa entre si. Depois, num silêncio solene, pegaram nele pelos braços e pelas pernas e transportaram-no para o lado checo.

E também foi assim que Peter Dieter lembrou a sua morte, antes de a alma partir para sempre como um movimento mecânico, de ida e volta, de um lado para outro, como quem oscila numa borda, como quem está de pé sobre uma ponte. E, no fundo, a última imagem que surgiu no seu cérebro sonolento foi a recordação do presépio de Albendorf com as suas figuras de madeira em movimento, numa paisagem pintada a cores, deslocando-se por acção de um mecanismo oculto. Figuras de madeira que caminhavam, figuras que perseguiam vacas de madeira, cães de madeira que corriam, um homem com um riso de madeira, mais acima uma figura que carregava baldes e acenava com a mão, o céu pintado trespassado por um fumo pintado, as aves pintadas a voar para ocidente. E dois pares de soldadinhos de madeira que transportavam o corpo de Peter Dieter de um lado para outro, para a eternidade.”

excerto do livro “Casa de Dia, Casa de Noite”, Olga Tokarczuk (2021). Tradução do polaco Teresa Fernandes Swiatki. Cavalo de Ferro Pp115-119 (ed.or. 1998)

Viagem por África. Do Cairo à Cidade do Cabo, de Paul Theroux

Em três horas que passei no cais do ferry de Port Bell, observei os tecelões a construírem os ninhos nas hastes de papiro da margem do rio. Tinham-me destinado o ferry Kabalega.

– Já vai, já vai – disse-me um funcionário do porto. – Estão a soldar o barco. – Uma águia pesqueira investiu subitamente. Um homem que lançava uma rede tirou-a da água, após várias tentativas, só com uns peixes minúsculos. Passou mais uma hora. Perto de uns barcos afundados, uns dez ou doze rapazes pescavam com canas de bamboo. Não estavam a divertir-se, estavam a pescar para poderem comer. Mais uma hora.

Comecei a passear de um lado para o outro, recordando que todos os livros que tinha lido sobre África continham longas passagens, e por vezes muitas páginas, sobre atrasos. “Permanecemos vários dias no complexo do chefe, à espera que ele nos autorizasse a regressar à costa”, é uma frase que ocorre em muitos livros sobre explorações africanas. A viagem de Burton por África contém brados de lamento contra os atrasos; o mesmo acontece na de Livingstone e de todos os outros. Livingstone, que estava convencido de que “a prisão de ventre traz febre pela certa”, ordenava aos seus homens que fizessem longas marchas pelo mato, porque esse esforço era eficaz para os intestinos. “[Em África,] devido à mudança de clima, é frequente dar-se uma peculiar situação intestintal, que faz com que o indivíduo imagine todo o tipo de coisas.” Para Livingstone, os atrasos significavam prisão de ventre. O Coração das Trevas é uma obra de atrasos exasperantes e dramáticos, e até a narrativa é obstrutiva – hesitante e deliberadamente tangencial. O atraso apresenta-se, aqui e ali, como uma forma de suspense que obriga o leitor a concentrar-se, mas é, com mais frequência, uma maçada que o enerva. Mas o que é que isso interessa? Este parágrafo já vai longo de mais.

Por vezes, parece que África é um local para onde se vai para esperar. Muitos africanos que eu conheci diziam a mesma coisa, mas sem ser em tom de queixa, porque muitos deles viviam a sua vida com uma paciência de fatalista. Vista de fora, África é um continente atrasado – com as economias em suspenso, as sociedades erguidas no ar, a política e os direitos humanos à espera, as comunidades estranguladas ou detidas. “Esperem um pouco”, foram sugerindo as vozes das autoridades aos africanos ao longo dos anos de colonização e independência. Mas o tempo dos africanos não era o mesmo que o tempo dos americanos. Uma geração no Ocidente correspondia a duas gerações em África, onde os adolescentes eram pais de família e aos trinta e poucos anos as pessoas estavam com os pés para a cova. Enquanto o tempo africano passava, eu ia pensando que o ritmo dos países ocidentais era uma loucura, que a rapidez da tecnologia moderna não tinha qualquer efeito e que, por seguir o seu próprio caminho, ao seu próprio ritmo, por razões que eram as suas, África era um refúgio e um local de repouso, o último território pelo qual valia a pena alguém animar-se. Desconfiava disso, mas nem sempre achava que fosse assim; sou impaciente por natureza.

Viagem Por África. Do Cairo à Cidade do Cabo, Quetzal Editores, 2019, p.288-289.

Nostalgia, de Andrei Tarkovsky

“Caro Pyotr Nikolayevich, encontro-me em Itália há dois anos, que foram extremamente importantes em todos os sentidos, quer para a minha profissão de músico, como para a minha vida pessoal. Esta noite tive um sonho angustiante, tinha de encenar uma grande ópera no teatro do meu senhor, o Conde. O primeiro acto era representado num grande parque cheio de estátuas, que eram homens nus pintados de branco e forçados à imobilidade por muito tempo. Eu também estava a representar o papel de uma dessas estátuas e sabia que se me me mexesse sofreria castigos terríveis, pois o nosso dono e senhor observava-nos pessoalmente. O frio subia-me pelos pés, em cima do mármore gelado do pedestal, enquanto as folhas outonais pousavam sobre o meu braço levantado. Mesmo assim não me mexia. Mas quando, já esgotado, sentia que estava para cair, acordei! Estava cheio de medo, percebi que não era um sonho mas a minha realidade.

Poderia tentar não regressar à Rússia, mas a ideia mata-me. Morreria se não pudesse voltar a ver, nunca mais na vida, a terra onde nasci, as bétulas, o céu da minha infância.

Saudações afectuosas do teu pobre amigo abandonado, Pavel Sosnovsky.”

Nostalgia, de Andrei Tarkovsky, 1983.

 

Desaparecidos, de Daniel Mendelsohn

“E então, muitos anos depois de ter sido mimado e beliscado nas salas de estar dos residentes de Miami, mortos há tanto tempo, muitos anos depois de ter fotocopiado pela primeira vez esse retrato, quando a única coisa que me interessava era uma conclusão para o meu trabalho para uma aula, muitos anos depois de ter sentido pela primeira vez que tinha de saber o que fosse possível sobre Shmiel, sobre o homem com quem partilhava um certo arco de sobrancelha e linha de maxilar, e que, por essa razão, fazia com que as pessoas chorassem, e, porque tinha de saber, passei todo um ano, décadas mais tarde, a viajar – eu, o escritor, a viajar com o meu irmão mais novo, o fotógrafo, um com as suas palavras para escrever e inscrições para decifrar e o outro, que tinha involuntariamente entrado no negócio da família, com as suas fotografias que montar e que imprimir, nós os dois, dois irmãos, o escritor e o fotógrafo, a viajarmos até Austrália e Praga e Viena e Telavive e Kfar Saba e Beer Sheva e Vilnius e Riga e depois novamente até Telavive e Kfar Saba outra vez e Beer Sheva outra vez, e até Haifa e Jerusalém e Estocolmo e, por fim, aqueles dois dias em Copenhaga com o homem que um dia tinha viajado até ainda mais longe do que nós e que tinha um segredo à nossa espera; um ano passado, Verão e Outono e Inverno e uma Primavera que também era um Outono, com o próprio tempo a parecer desconjuntar-se à medida que o passado se erguia das suas cinzas e da sua sujidade e do seu papel velho e da poeira e do whiskey e dos sais de violeta, e vinha à tona mais uma vez como a escrita desbotada e quase ilegível nas costas de uma fotografia velha, levantando-se para confundir e competir com o presente; um ano passado a seguir a pista de pessoas que são agora muito mais velhas do que eram, na época, as pessoas velhas que costumavam beliscar-me ao faces e oferecer-me lápis em Miami Beach, seguir a pista de pessoas que só sabiam que Shmiel fora o pai bem constituído, impressionante e algo distante, das suas colegas de escola, daquelas quatro filhas, todas desaparecidas; sobrevoar o Atlântico e o Pacífico para falar com elas e recolher as pontas de informação que ainda existiam, por muito vagas que fossem as coisas que tinham para dizer-me: – então, muitos anos depois de tudo isso, quando me preparava para sentar-me e escrever este livro, o livro de todas essas viagens e de todos esses anos, e persuadira a minha mãe a deixar-me ver a fotografia original mais uma vez, o anverso do que conhecia tão bem, sim, mas também o reverso; então, só então, pude por fim ler, agora completamente, a inscrição original, ler as palavras que o meu avô tinha escrito nas costas, dizendo-me algo que, constato agora, como tantas outras coisas que ele tinha sublinhado para mim, ele considerava crucial, queria que eu soubesse e que eu reflectisse. (Mas como poderia eu ver isso então, quando tudo o que queria era uma fotografia que acompanhasse uma apresentação de um trabalho numa aula? Afinal, vemos o que queremos ver e o resto desaparece.)

 

O que ele de facto escrevera, como posso agora dizer porque estive a vê-lo muito recentemente, era isto, a tinta azul e em letras maiúsculas: HERMAN EHRLICH E SAMUEL JAEGER NO EXÉRCITO AUSTRÍCACO, 1916. Fora a marcador vermelho que ele acrescentara as palavras que eu sempre recordaria. MORTOS PELOS NAZIS NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL.”

 

Desaparecidos, de Daniel Mendelsohn, D. Quixote, 2009 (ed.or 2006; p.91-92)

Viagens, de Olga Tokarczuk

1540-1 Viagens de Olga Tokarczuk

Em Todo o Lado e em Parte Nenhuma

Quando viajo, desapareço do mapa. Ninguém sabe onde estou. Se estou ainda no ponto de partida ou se estou já no ponto de chegada. Será que existe um “entre” as duas coisas? Ou serei eu como aquele dia perdido que acontece quando se viaja para leste ou aquela noite recuperada quando se viaja para oeste? Será que sou regida por aquela lei que é o orgulho da Física Quântica – a partícula pode existir simultaneamente em dois lugares distintos? Ou talvez por outra lei, ainda desconhecida e por comprovar – a de poder não existir duplamente num mesmo lugar?

Penso que há muitas pessoas como eu. Desaparecidas, ausentes que, de repente, aparecem nos terminais dos aeroportos e só começam a existir quando os funcionários da alfândega lhes carimbam os passaportes ou quando um gentil recepcionista de hotel lhes entrega uma chave. Já devem ter descoberto a sua instabilidade e a sua dependência de lugares, horas do dia, línguas ou cidades e suas ambiências. Fluidez, mobilidade, ilusão – eis o que significa ser civilizado. Os bárbaros não viajam, dirigem-se directamente para o destino ou, então, fazem incursões.

Assim pensa a mulher que me oferece um chá de plantas, guardado num termo, enquanto aguardamos o autocarro que nos leva da estação para o aeroporto. Tem, nas mãos pintadas com hena, um padrão complicado que se abate a cada dia que passa. Quando nos sentamos, dá-me uma lição sobre a noção de tempo. Afirma que os povos sedentários, que se dedicam à agricultura, preferem os prazeres facultados pelo tempo circular, no seio do qual todos os acontecimentos retornam ao seu próprio princípio, enroscando-se para formar um embrião e repetir o processo de amadurecimento e de morte. Mas os nómadas e os mercadores, que se encontram constantemente em viagem, tiveram de inventar um tipo de tempo que melhor se adaptasse à sua condição de viajantes. Trata-se de um tempo linear, mais prático, que lhes permite medir a distância percorrida até alcançar o destino e a evolução dos proveitos obtidos. Cada momento é único e nunca se repete, o que favorece o risco, reforça o usufruto do presente e a fruição do momento. Mas, no fundo, trata-se de uma amarga descoberta – se a mudança no tempo se torna irreversível, a perda e o luto tornam-se algo quotidiano e, por tal razão, os seus lábios jamais dirão palavras como “esgotado” ou “inútil”.

– Esforços inúteis, contas bancárias esgotadas – ri-se a mulher, pondo as mãos pintadas atrás da cabeça.

Diz que a única maneira de sobreviver num tempo linear que se distende é conservando a distância, uma dança que consiste em aproximar-se e afastar-se, um passo para a frente e um passo para trás, um passo para a esquerda, outro para a direita – passos fáceis de decorar. E quanto maior o mundo se tornar maior será a distância que pode ser dançada desta maneira – emigrar para além de sete mares, para além de duas línguas e de uma religião.

Eu, porém, tenho uma opinião diferente sobre a noção de tempo. O tempo de todos os viajantes é constituído por muitos tempos reunidos num, uma multiplicidade de tempos. Há o tempo insular, arquipélagos da ordem no oceano do caos; há o tempo produzido pelos relógios das estações de comboios, que é diferente consoante os lugares; há o tempo convencionado do meridiano e, por conseguinte, é bom que ninguém o leve muito a sério. Há as horas que desaparecem num avião em pleno voo, onde o amanhecer é repentino como um relâmpago e, logo, ameaçado pelo meio-dia e pelo anoitecer. Há o tempo caótico das grandes cidades onde permanecemos um momento para nos entregarmos à escravidão de um serão. E há o tempo preguiçoso das planícies desabitadas, vistas do alto de um avião.

Também acho que o mundo se encontra no interior de nós próprios, nos sulcos do cérebro e na glândula pineal. É um globo entalado na garganta e, a bem dizer, poderíamos tossir e desengasgar-nos, cuspindo-o.

Viagens, de Olga Tokarczuk, Cavalo de Ferro, 2019 (p.49-52)

Eu nunca tivera interesse em conhecer a Irlanda, Ray Bradbury

Eu nunca tivera interesse em conhecer a Irlanda. E eis agora John Huston ao telefone, a convidar-me para uma bebida no seu hotel. Nessa tarde, um e outro de copo na mão, Huston olhou-me demoradamente e perguntou: “O que acha de ir viver para a Irlanda e adaptar Moby Dick para o cinema?”

E, de um momento para o outro, ali estávamos nós em perseguição da baleia branca: eu,  a minha mulher e as nossas duas filhas.

Levei sete meses a encontrar, caçar e depois esquecer aquela cauda gigante.

De Outubro a Abril, vivi num país onde não queria estar.

Não queria ver, ouvir ou sentir a Irlanda. A igreja era uma coisa pavorosa. O tempo era horrível. A pobreza era chocante. Recusei-me a ter contacto com tais coisas. Além de que tinha peixe graúdo para apanhar…

Só não contei com a partida que o meu subconsciente me pregou. No meio de toda aquela pobreza e humidade, enquanto tentava apanhar a baleia-leviatã com a minha máquina de escrever, as minhas antenas foram captando impressões dos Irlandeses. Não que o meu lado consciente, aquele que se mantinha desperto e que andava por ali, não se apercebesse deles – aliás, até gostava daquelas pessoas e admirava-as; tinha algumas por amigas e via-as com frequência. Mas a minha impressão geral era de chuva e pobreza, e só conseguia ter pena de mim por me ver naquele país que era uma lástima.

Já com o monstro branco apanhado e metido nas latas de película, pirei-me da Irlanda o mais depressa possível, convencido de que tudo o que aquela estada me trouxera fora pavor de tempestades e nevoeiro, e das ruas de Dublin e Kilcock cheias de mendigos.

Mas a visão subliminar é astuta. Enquanto me lamentava pelo muito que trabalhava e pela minha incapacidade, dia sim, dia não, de me meter na pele de Herman Melville, como desejava, o meu intímo manteve-se alerta e tratou de encher bem os pulmões, arrebitar os ouvidos e arregalar os olhos, e registou a Irlanda e as suas gentes para mais tarde, quando eu já conseguisse descontrair e deixar-me surpreender por tais impressões.

Regressei pela Sicília e por Itália, onde aproveitei para cozer ao sol e assim me libertar de vez do Inverno irlandês, e assegurei a quem quisesse ouvir que “jamais escreveria uma linha sobre quando saíamos a correr dos cinemas de Connemara ou Donnybrook”.

Deveria ter-me lembrado da experiência no México, muitos anos antes, onde fora encontrar não chuva e pobreza, mas sol e pobreza, vindo de lá embora com pânico de um clima que respirava morte e do terrível hálito adocicado dos Mexicanos, um hálito de gente morta. O caso é que, no fim, tudo isso me inspirara a escrever uns quantos pesadelos de não se desdenhar.

Fosse como fosse, eu insistia que, para mim, a Irlanda morrera, o velório já fora e as suas gentes não mais me iriam assombrar.

Passaram vários anos.

E então, numa tarde de chuva, Mike (Nick, na vida real), o taxista, surgiu no meu cérebro e sentou-se ali a um canto, onde eu mal o conseguia ver. Dando-me um toque ao de leve com o cotovelo, teve o atrevimento de me lembrar os trajectos que ambos fizéramos pelos lodaçais ao longo do Liffey, noite após noite, com ele na tagarelice enquanto levava devagar o seu velho carro com carroçaria de aço pelo meio do nevoeiro, para me ir deixar no Royal Hiberian Hotel, onde eu estava instalado. Aquele taxista foi quem eu fiquei a conhecer melhor naquela vastidão verdejante, de tantas viagens que juntos fizemos noite dentro.

“Quero que contes a verdade sobre mim”, disse-me ele. “Só tens de escrever tudo tal como aconteceu.”

E, de um momento para o outro, já eu tinha um conto e uma peça terminados. O que está no conto é verdade, e também o que está na peça. Aconteceu tudo como lá  é dito. E não podia ter acontecido de nenhuma outra maneira.

Ray Radbury (2019 ; ed. Or. 1990) O Zen e a arte da escrita, Trad. Miguel Romeira, Cavalo de Ferro,  P. 109-111.